O HEBREU: LINGUAGEM E CONHECIMENTO



“Si hay un idioma inventado no es el gallego, sino el hebreo”.

(Ramón Villares, antigo Rector da Universidade de Compostela)





Os gnósticos judeus sustentavam que o hebreu da Torá era sem dúvida o idioma de Deus, embora o homem tiver deixado de ter acceso às profundidades do seu sentido esotérico cabal. Outros inquisidores do absoluto, de Paracelso aos pietistas do século XVII, estavam dispostos a ver no hebreu um modo de expressão privilegiado, mas corrompido pela caída e que só era capaz de manifestar imperfectamente a presença divina. Da sabedoria brahmânica às tradições populares celtas e norafricanas, todas as mitologias lingüísticas, ou praticamente todas, coincidem em acreditar que a língua original se dividiu em 72 fragmentos ou em qualquer múltiplo simples deste número. Como identificar os primeiros fragmentos? É evidente que, se chegassem a ser reconhecidos, uma investigação acuciosa saberia descobrer neles pegadas léxicas e sintácticas da língua perdida do Paraíso, restos equitativamente esparejidos por um Deus furioso e cuja ré-construcção, como a dum mosaico roto, devolveria aos homens a gramática universal de Adám.. De existir em verdade, estas claves estariam ocultas muito profundamente. Teriam que ser rastrejadas, como os membros da Cábala e os discípulos de Hermes Trismegisto tratavam de fazê-lo, interrogando as configurações ocultas das letras e das sílabas, invertindo palavras e aplicando aos nomes antigos -especialmente aos diversos nomes do Criador- um cálculo tao intrincado como o dos quiromânticos e astrólogos. Os riscos eram muito altos. Se o homem podia romper o cárcere dum discurso disperso e corrompido (o cascalho da Torre derrubada), penetraria novamente nos pregues mais íntimos da realidade. Conheceria a verdade ao falá-la e, ao dizer, diria verdade. Seria essa a fim da sua alienação respeito doutros povos; teria rematado o seu ostracismo nas jerigonças e a ambiguidade. A raíz duma antiga e imperiosa esperança afirma-se na palavra esperanto.

Do capítulo segundo da Gênese até as "Investigações" de Wittgenstein ou ao primeiro artigo inédito de Chomsky sobre a morfofonêmica no hebreu, o pensamento judeu tem desenvolvido um papel de primeira importância na mística, a erudição e a filosofia linguísticas. Para os judeus como para os gentios, as Táboas de Moisês possuiam um carácter de revelação extranha a qualquer outro corpo verbal posterior. O hebreu põe a prova às línguas, tem sido o fio de diamante na ferramenta do talhador. Na tradição judea achamos todos os temas que orientarão a reflexão occidental sobre a essência das línguas humanas e o seu enigmático desmembramento. Cada elemento do texto recebido tem engendrado as suas próprias tradições de estudo no misticismo judaico e a tradição rabínica. Existe uma filologia e uma gnose de cada uma das letras hebreas, como as há de cada uma das palavras e unidades gramaticais. Para o misticismo merkabah, todo caracter escrito encarna um detalhe do panorama essencial da criação; a experiência humana na sua totalidade, os discursos chegados e por vir, acham-se já latejantes nas letras do alfabeto. Essas letras insondáveis cujas combinações configuram os 72 nomes de Deus podem revelar, quando se escruta nelas, o pregue mais escondido da significação, a cifra, a geografia do cosmos. Por isso a cábala profética preocupa-se por desenvolver a "ciência das combinações das letras". Graças a uma meditação levada até a hipnose sobre os agrupamentos incertos dos caracteres individuais, que, doutra banda, não têm necessariamente um significado em sim próprios, o iniciado pode chegar a vislumbrar o venerável nome de Deus que, se bem está manifesto na fisionomia da natureza, está envolvido, por assim dizê-lo, nos amortiguados espesores da língua vulgar. Embora o hebreu possa dar-se o privilégio dum contacto directo, a Cábala reconhece que todas as línguas são um mistério e que se relacionam todas, em última instância, com a palavra divina.

Para o jasidismo alemão é absolutamente necessário conservar intacta a palavra com o seu sentido oculto e não o signo alfabético. Mutilar uma só palavra da Torá, alterar o seu sítio, poderia pôr em perigo os ténues vínculos que subsistem entre o homem caído e a presença divina. Já o Talmud dizia: "Omitir ou acrescentar uma só letra pode levar à destrucção do mundo inteiro". Alguns illuminati chegaram a especular que a escuridade e a turbulência do mundo deviam-se a algum erro -sem importar quam pequeno fosse- cometido pelo amanuense a quem Deus ditou o texto sagrado. A teosofia exposta no Zohar e nos comentários que o seguiram empregava retruêcanos místicos e jogos de palavras para provar a verazidade dalguns pontos essenciais da sua doutrina. Elohim, o nome de Deus, une Meu, o sujeito oculto, a Eloha, o objecto oculto. A dissociação de sujeito e objecto é a debilidade que aqueixa ao mundo temporal. Só o nome de Deus contém a promesa da unidade final, a seguridade de que o homem se libertará da dialética da história. Em ressumo: a verdadeira linguagem de Deus,o idioma da intimidade perfeita que lhe era familiar a Adám e à espécie humana até Babel, ainda pode ser descifrada, quando menos parcialmente, nas ramificações e capas interiores do hebreu e, quicá, nas outras línguas nascidas da dispersão original.



GEORGE STEINER

(Fragmento de "Depois de Babel", 1975)

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