A PISCINA DA INOCÊNCIA RECUPERADA (I)


Publicamos hoje a primeira de três entregas do capítulo adicado à percepção que Europa tem do problema judeu, nomeadamente de Israel, pertencente ao último livro do pensador francês Pascal Bruckner, “La tyrannie de la penitence” (Éditions Grasset, Maio de 2008). Nesta magnífica obra, Bruckner realiza uma rigorosa análise do que ele denomina o masoquismo occidental. Bruckner sinala que Europa, a partir de 1945 sofre os tormentos do arrependimento, e aposta por um rechaço lúzido da responsabilidade da actual situação dos países descolonizados avogando por um novo universalismo das luzes. No ensaio, e desde um ponto de vista que intencionadamente se situa no politicamente incorrecto, trata de dar resposta a uma série de perguntas incómodas que poucos se atrevem a plantejar sobre as nossas relações com a imigração, o mundo islâmico, os EEUU, Israel e o próprio passado do continente.
Há edição em castelhano recém saída na Editorial Ariel.
Altamente recomendável.




A PISCINA DA INOCÊNCIA RECUPERADA


Todos os viacrúzis chegam à sua redenção. Aos agobiados europeus fica-lhes uma saída para evitar a decadência: desviar o pecado face as suas nações indignas da nossa civilização, Israel e os EEUU, repudiá-las para poder redimir-se. Romper todos os laços com elas, repudiá-las sem trégua, manifestar em voz alta o desejo da sua neutralização, já que não o da sua desaparição, provar que “Occidente” não existe, que é um conceito inapropriado porque abarca realidades muito diferentes.

Aos que têm perdido todas as suas esperanças subversivas e já não se satisfazem com as coqueterias da vestimenta do Comandante Marcos, fica-lhes, para saciar a sua sede de absoluto, um último bom selvagem: o palestiniano. Ele é o grande icono crístico, o oprimido dos oprimidos cujo processo de beatificação dura já trinta anos. E o facto de que a sua situação não tenha melhorado permite manter viva a revolta que encarna.

Desde 1974, Jean Genet, que cantou nas suas obras a beleza das SS, dos granujas, dos assassinos, dos Panteiras Negras, dos fedayins, pontualizava numa entrevista com Tajar Ben Jelloun: “Por que os palestinianos? Era o mais natural que me interessasse não só pelos mais desfavorecidos, senão pelos que encarnam no seu nível mais extremo o ódio face Occidente”. Ocorre que os palestinianos, ou mais bem a ideia mítica que se tem de eles, conjugam dois elementos favoráveis a esta cristalização: são podres com respeito a um punhado de colonizadores procedentes de Europa, e são muçulmãos na sua maioria, quer dizer, são membros duma religião que para uma parte da esquerda representam a ponta de lança dos desherdados. Deste modo, este conflito interminável convertiu-se durante os anos 1980-2000, a medida que retrocediam os horizontes revolucionários, na causa indiscutível dum certo progressismo orfo. O assombrosso é que as preferências duma minoria se tenham convertido numa opção maioritária, que tenha recebido a aprovação das mais altas esferas do poder (quando menos na França e na Europa Occidental) até o ponto de configurar a mentalidade de toda uma época.


QUE CENTRALIDADE DE ORIENTE PRÓXIMO?


Efectivamente, nada resulta mais surprendente para um observador que a extraordinária mediatização da que se beneficia esta região do mundo desde há tantos anos. Como se a sorte do planeta se decidir por completo num anaco de terra que se extende entre Tel-Aviv, Ramala e Gaza. A condeia de Israel é em princípio a obsesão de Israel. É uma mediatização paradoxal, pois não ensina nada no senso estrito do termo, senão que se limita a reforçar o estereotipo do enfrontamento entre um Estado colonial e razista chegado com retrasso ao mundo árabe (1948) e um povo esmagado e expoliado.

O tratamento da Segunda Intifada, a partir de 2.000, puxo de manifesto o clichê que enfrontava às forças da Opresão com as forças da Resistência. Esta riada permanente de novas –nem um só dia sem informes minuciosos dos abusos do exército israeli- ía acompanhada dum monumental desconhecimento da realidade da zona. Na televisão e demais meios de comunicação asistia-se a um excesso de informação produtor de ignorância. Vaia surpresa, por exemplo, ao descobrir ao dia seguinte da morte de Yaser Arafat, o 11 de Novembro de 2004, que a militarização da Intifada resultara um formidável fracasso e deixara à sociedade esgotada e ao borde da guerra civil. Que também conlevara uma progressiva perseguição dos cristãos, obrigados a fogir ou comprometer-se com o nacionalismo, e revela a corrupção de Al Fatah sem menoscabar a moral do Estado hebreu. Desengano para os militantes, mas também para os correspondentes de imprensa, que se sentiram desautorizados! Que surpresa se inteirar de que o velho Arafat, possuidor de uma extraordinária baraka, que fogira de tantas emboscadas, destacara também como um orfebre da doble linguagem, encarnara o feito nacional palestiniano tanto como o dinamitara, torpedeando as negociações de Camp David de 2.000! Isso sem falar da demonização do “carneceiro” Ariel Sharon (os jóvenes judeus agredidos nos colégios franceses durante esses anos tinham que suportar que os chamassem “sharões” ou “sharoneiros”), que impediu ver o desenlaço que se avizinhava em Gaza, o estoirido do Likud e a suavização das teses expansionistas do Grande Israel. Os periodistas não mentiram, deixaram-se cegar pelas suas convicções..., estes homens e mulheres tão apegados à terra não viram na realidade mais que a projecção das suas próprias pantasmas.

Com o apoio aos palestinianos não se deseja ajudar a seres de carne e óso, senão a ideias puras. Nesta beira do Mediterrâneo, os intelectuais, os escritores, os políticos, não querem tanto investigar sobre um antagonismo concreto –um litígio imobiliário entre dois proprietários igualmente legítimos, como dixo Amos Oz- como desejar arranjar contas com a cultura occidental. Pouco importa o tipo de realidade destes milhões de homens e mulheres submetidos a humilhações cotidianas e a condições de vida precárias; como também não importa a nossa aquiescência com respeito ao terrorismo palestiniano, tanto de Hamas como de Hezbullah.

O que se passa é que Oriente Próximo tem-se convertido num lugar onde se desenvolve uma batalha mundial pelo título de pária. Georges Montaron escrevia já em 1969 em “Témoignage chrétien”, órgao católico de esquerdas: “Jesuscristo está com os palestinianos, tanto se são muçulmãos, judeus ou cristãos, desde o momento em que são pobres [...] os refugiados são os autênticos lugares santos de Palestina, os verdaeiros testigos de Deus ainda vivos”. Uns dias depois, o próprio Montaron escrevia: “No coração de todos os pobres do mundo árabe, os fedayin são heróis, a image viva do libertador. O mesmo que o Che Cuevara em América Latina, a resistência palestiniana é uma cama que ilumina aos oprimidos e se extende cada vez mais. Aqui, ainda mais que entre nós, a resistência é sinônimo de Revolução e tem uma potença messiânica incalculável”. Vestígios de uma época exaltada, lirismo dum tempo que temos deixado atrás? Quiçá, mas entretando têm sido barridas numerosas esperanças de regulamentos, o conflito tem-se atascado e nenhum outro em nenhuma parte do mundo tem levantado o entusiasmo que desperta este.

Pensemos, por exemplo, no que escreveu Edgar Morin o 19 de Fevereiro de 2004: “Não cabe dúvida de que os palestinianos são os humilhados e ofendidos de hoje em dia e nenhuma razão ideológica poderia desviar a compassião que despertam”. O argumento não é falso, mas por que temos que esquecer aos chechenos, os tibetãos, aos sudaneses de Darfur, aos congolenhos, que passaram todos pelo ecrã como se só nos interessassem as vítimas dum país occidental, coroadas a este respeito de uma aureola particular? De modo que nos entra a suspeita de que a nossa percepção do Oriente Próximo é menos política que psicológica. Não se trata de colher uma fonte de tensões, de reconciliar aos irmãos inimigos, senão de trasladar a um teatro estrangeiro as nossas próprias mitologias.


“SIONISMO, ADN CRIMINAL DA HUMANIDADE”


Nesta monomania pelo Oriente Próximo confluim dois interesses: permite ao mundo árabe transformar ao Estado judeu em causa cômoda das suas missérias e frustrações (o rechaço face Israel é o afrodisíaco mais potente dos muçulmãos, dizia com humor Hassan II), e a uma parte de Europa limpar-se dos seus crimes passados contra o judaísmo. A condeia de Israel, autêntico tema estrela do Quai d’Orsay, equivaleria à exoneração dos crimes do passado contra os judeus. Como se os descendentes lonjanos dos deportados dessem valor a partir de agora aos verdugos que gasearam aos seus antepassados. Tempo atrás, o adjectivo “sionista” era já sinônimo de infâmia no vocabulário da propaganda comunista. O próprio Stáline utilizara-o, juntamente com o adjectivo “cosmopolita”, para justificar uma vasta perseguição ánti-semita a finais da década de 1940, à que só a sua morte puxo fim. Mas o termo, convertido em insulto, inclusso em obscenidade entre a esquerda europeia, fez fortuna no mundo árabe-muçulmão que tem importado, sem discriminação, toda a propaganda ánti-semita europeia.

Que crime não se terá imputado ao sionismo nos meios destes países? De ser “uma forma de razismo e de discriminação razial”, como afirma uma ressolução do 10 de Novembro de 1975 adoptada pela Assembleia Geral da ONU. De ter criado na sua totalidade a Hitler, de ter inventado o mito do Holocausto para fazer com ele um jugoso negócio. Mas também de ser responsável do 11-S em New York (o Mossad teria avisado a todos os judeus que não fossem trabalhar esse dia!), de ter criado o vírus da SIDA para eliminar à humanidade ou à raça negra, de ter provocado o maremoto de Dezembro de 2004 através duma explosião nuclear, de estar também na orige da gripe aviar para debilitar a África e a Ásia, de ter pagado baixo corda as caricaturas de Mahoma aparecidas em Dinamarca com a finalidade de enfrontar entre si a cristãos e muçulmãos, segundo declarou o ayatolá Jamenei em Fevereiro de 2006. O apelativo infamante aplica-se agora a qualquer que considere normal a ideia dum Estado judeu, já que Israel é antetudo culpável de existir. Se o sionismo não existisse haveria que o inventar!

Não se trata de minimizar a tragédia palestiniana, de negar a ilegitimidade da ocupação, de subestimar a repressão brutal, amiúde desproporcionada, da Intifada ou as destrucções inutilmente crueis que se infligem à população civil, aplestiniana ou libanesa. Também não deixa de resultar assombroso o facto de que se centre a atenção de maneira exclussiva sobre esta região em detrimento das demais. O Estado de Israel não é precisamente irreprochável. Consruiu-se a partir duma expropriação favorecida pelas guerras que os seus vizinhos lançaram contra ele, tem uma nutrida representação de fanáticos e de extremistas, manteve vinculações perversas com o regime de segregação de Pretória e de Rod´seia, o seu exército comete de quando em vez terríveis atropelos, mas torze-se o sentido quando é acrescentado ao Império do Mal.

De feito, time-se por onde se tome, o Estado hebreu será sempre o autor de perturbações, o agente da divisão, o que frea a concórdia universal, o que retarda a chegada da bendita época da harmonia, em suma, a pedra no sapato da humanidade. Sem ele, o mundo portaria-se melhor, pois este pequeno anaco de terra pom-nos a todos em perigo. Inclusso é a principal ameaça da paz mundial, segundo uma sondagem encarregada pela Comisão Europeia em Novembro de 2003. Agora já o sabemos. O necessário arranjo do problema palestiniano, quer dizer, a criação em Gaza e Cisjordânia de um Estado com fronteiras reconhecidas não garantiria em absoluto a paz para Israel, como também não calmará o ardor dos cruzados do Profeta em guerra contra Occidente. Cumpre abordar esta tarefa justa, mas sem ilusões.

É curioso ver as passiões que levanta este enfrontamento de baixa intensidade se o comparamos com as guerras africanas onde as vítimas se contam por milhões, e apesar disso não movilizam radicalmente as conciências!

Pareceria que na esfera mediática a vida de um israeli ou dum palestiniano vale um milheiro ou cem milheiros de vezes a de um africano. Talvez cumpra ver neste ódio a evolução da nossa actitude com respeito ao problema judeu em Europa. Temos passado da idealização subseguinte ao decobrimento do genocídio à posterior denigração. O elógio levava implícita a iminência da crítica atroz, a calúnia seguia de cerca à idolatria. A image do bom judeu, humilde e perseguido, foi ré-empraçada pela do colonizador arrogante e agressivo. Admirava-se ao primeiro, desarraigado, vagamundo, testemunha exemplar da condição humana; desprecia-se-lhe como pessoa normal, cidadão ordinário de uma nação que se defende com unhas e dentes.

Ódia-se aos judeus por terem superado a sua debilidade imemorial, por ter recorrido à força sem temor. Têm traicioinado a missão que lhes atribuira a História, a de ser um povo de apátridas que não se encerra na estreitez obtusa das nações. A sua dispersão pelo mundo abonava no passado a sua grandeza. No momento em que a própria Europa abjura das suas pátrias, a vinculação dos judeus a uma terra parcialmente roubada a outros povos equivale a um desastre.

Em ressumo, neles não amávamos uma memória, uma cultura, uma relação concreta com o estudo, a escrita e o livro, senão mais bem à vítima impessoal, puja projecção crística. O seu principal pecado? Os judeus têm ré-escrito sem o nosso permiso o guião que lhes impugéramos, portanto têm perdido o direito a pedir-nos contas. Nação de párias, também Israel tem-se convertido, na opinião pública europeia, no párias das nações. “Israel –dixo José Bové –é um sentinela avançado da colonização liberal”. Ostermos estám eligidos a propósito para conjugar duas abominações: colonialismo e liberalismo. Portanto, todos os judeus de Europa tên sido declarados culpáveis do Estado hebreu, agás se o repudiam publicamente.

Pela sua cobertura maniquea do conflito árabe-israeli, os meios de comunicação tên criado uma atmósfera irrespirável e têm uma esmagadora responsabilidade no sentimento de inquietude que os invade nos últimos anos.

Desde a conferência de Durban contra o razismo de Sudáfrica, celebrada no 2000, que deu pé a uma vaga de ódio ánti-semita, exige-se aos judeus da diáspora que proclamem alto e forte a sua aversão ao sionismo.


PASCAL BRUCKNER*


* Pascal Bruckner é um filósofo e novelista francês. Ex-intelectual de esquerdas, nas últimas eleições na França fixo campanha pública por Sarkozy. Tem escrito vários livros, entre eles “A nova desorde amorosa”, em colaboração com Alain Finkielkraut.

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