OS OUTROS SEIS MILHÕES

De acordo com a tradição judaica, apenas um quinto dos antigos escravos hebreus foi libertado do Egipto. A Torá revela que 600.000 homens com mais de 20 anos saíram da escravidão. Se juntarmos mulheres, crianças e jovens até aos 20 anos, teremos perto de três milhões de pessoas. E estes, lembremos, eram apenas 1/5 dos Filhos de Israel. Os outros, os que não saíram, nunca chegaram a receber a Torá. Nunca entraram em Israel. Nunca se tornaram Judeus. Os Hebreus que nunca saíram do Egipto morreram durante os três dias da praga da escuridão. A escuridão egípcia, na qual estavam tão imersos, sufocou completamente a sua identidade hebraica.


No ano passado, a Agência Judaica realizou uma pesquisa destinada a determinar a população potencial de pessoas que podem fazer aliyá, a imigração para Israel. Praticamente esgotada a população de Judeus da antiga União Soviética, o estudo centrou-se nos Estados Unidos, o país com a maior comunidade judaica fora de Israel. Pelos números oficiais das comunidades judaicas, vivem nos EUA mais de 5 milhões de Judeus. Porém, o estudo da Agência Judaica descobriu que existem cerca de 11 milhões de norte-americanos com direito a imigrar para Israel – 6 milhões a mais do que o número oficial de Judeus!


Quem são estes seis milhões?


A grande parte dos judeus dos EUA chegou no período entre os finais do século XIX e o pós-II Guerra Mundial. Na sua maioria gente pobre que fugia de perseguições na Rússia, Polónia e Alemanha, fundaram a maior comunidade judaica do Mundo. No terreno da liberdade americana o Judaísmo atingiu o seu nível mais elevado desde a Idade de Ouro do Judaísmo Espanhol. O inglês tornou-se, segundo alguns, o "novo iídiche". Os Judeus atingiram a plena integração na sociedade americana: são líderes políticos e culturais, ícones da sociedade, apontados como exemplos do melhor que a América produz. No cinema, na ciência, na literatura.


Porém, em duas gerações apenas, milhões de descendentes dos judeus americanos perderam-se para o Judaísmo. A tranquilidade da vida judaica na América "ajudou" à assimilação. Muitos não têm qualquer vínculo com a comunidade judaica e a assimilação atingiu níveis alarmantes: mais de 50% dos judeus do país casam-se com não-judeus. (No Brasil a percentagem será superior.) Porém, mais do que uma catástrofe, muitos vêm este fenómeno como um sinal de "integração".


São numerosas as comédias que mostram um "casamento ecuménico", com um rabino e um padre católico ou pastor protestante partilhando a cerimónia. De novo, a "integração". Apesar da enorme presença de elementos judeus na cultura americana (e daí para todo o mundo), mais crianças judias sabem o nome da mãe de Jesus do que da mãe de Moisés. Muitas famílias judaicas celebram Channuka mas com uma árvore de Natal ao lado da chanukkia. Muitos judeus não celebram Rosh Hashaná nem escutam o toque do shofar, mas não perdem um Reveillon, nem deixam de escutar e admirar o fogo de artifício.


Em Portugal, dos fundadores da sinagoga de Lisboa, há pouco mais de 100 anos, são raros os seus descendentes que permanecem judeus. Mesmo das poucas famílias judias que restam, contam-se pelos dedos de uma mão as que são realmente religiosas. Há judeus suficientes para encher diariamente os cerca de 300 lugares da sinagoga, mas esta é usada apenas no Shabbat e festas. E o minyan (grupo mínimo de 10 homens necessário para realizar uma cerimónia religiosa) depende invariavelmente de algum ocasional turista. Sem escola judaica para as crianças, deixar o país é a opção para quem quer permanecer fiel às tradições. Em três gerações, as famílias judaicas tradicionais de Lisboa foram totalmente assimiladas. Restam os nomes de família apresentados com um orgulho aristocrata, mas pouco ou nada mais do que isso.


No calendário judaico, em Tisha be'Av, lembramos a destruição do Templo de Jerusalém e o consequente exílio que se lhe seguiu. Nesse dia lembramos também a Expulsão dos Judeus de Espanha, ocorrida na mesma data. É dia de jejum e de luto. Uma vez por ano, comemoramos o Yom HaShoá, o dia da memória do Holocausto. As sirenes tocam e o trânsito pára em Israel. Escolas e comunidades judaicas de todo o Mundo organizam palestras e exposições sobre o tema. Lembramos com solenidade nestas duas datas as maiores tragédias que caíram sobre o nosso Povo. Os milhões de Judeus que morreram e a glória do nosso passado. Todavia, não temos nenhuma data dedicada aos descendentes dos "Filhos de Israel" que nunca chegaram a ser Judeus.


A destruição do Templo, a Expulsão de Espanha, o Holocausto foram tragédias impostas aos Judeus por outros povos. Recordamo-las com dor pelas enormes perdas que sofremos. Lamentamos os Judeus que se perderam pela acção brutal dos Romanos, da Inquisição, dos Nazis. A assimilação, porém, é uma tragédia causada por nós mesmos, dentro do próprio Povo Judeu. De livre vontade, judeus casam-se fora da fé judaica. Alguns líderes judaicos chamaram-lhe "o Holocausto Silencioso". Silencioso, porque destrói sem sangue, sem tiros, sem cinzas. Mas – é possível – sem dor?


Como crescem os filhos dos Judeus que se casaram fora do Judaísmo? Que identidade têm? Sentem-se Judeus, ou outra coisa qualquer? Talvez até tenham passado pelo brit (circuncisão) e uma espécie de bar mitzva, estudaram em alguma escola judaica, tenham alguns amigos judeus… Como pode não sentir dor um filho de pai judeu e mãe não-judia quando entra numa sinagoga e, para o minyan, ele conta tanto como o turista que veio apenas tirar fotos?


O Judaísmo é uma corrente de elos unidos, formada desde Abraão. O elemento que mantém forte a corrente é a família judaica. Pessach é a festa judaica mais familiar. Não por acaso, as figuras centrais na celebração do seder de Pessach são as crianças. É nelas, na sua integração na história e tradições judaicas, que reside a coesão de toda a cadeia de transmissão que começou com Abraão. Afinal, Abraão foi escolhido para receber o pacto divino não apenas por ser um homem justo, mas porque D’us soube que Abraão transmitiria o Seu pacto às próximas gerações.


É nas crianças judias, frutos de um casamento e de uma família judaica, que se perpetua o pacto entre D’us e Abraão (reafirmado no Sinai a todo o Povo de Israel). Pessach, que significa "passagem", é o símbolo maior da transmissão da identidade judaica. Ao vivermos Pessach como se nós mesmos tivéssemos sido redimidos do Egito, renovamos a nossa fidelidade ao Povo de Israel. Decidimos se permanecemos, com os nossos filhos, fiéis ao pacto que recebemos dos nossos antepassados e aceitamos a redenção de D'us, ou se somos dos milhões que desapareceram na escuridão.


Nota: O nome da mãe de Moisés é Yocheved.



GABRIEL CANHOTO*


* Gabriel Canhoto edita o blogue Clara Mente


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