O NÁZI DE NAZARET

Inclusso antes de abrir o livro, o leitor ve-se confrontado com a perversidade moral exposta na obra de Susannah Heschel, “O Jesus ário”. No centro da sua portada, dois universos simbólicos que hipoteticamente deveriam estar confrontados, aparecem em conjunção numa fotografia datada em 1935 [ver image] do interior duma igreja em Colónia: sobre um altar dominado por uma enorme esvástica da bandeira Nacional Socialista, está a figura do Cristo cruzificado. Nem o céu, nem a história, nem a própria Bíblia, puideram fogir da espantosa lógica do razismo. Se Alemanha era uma nação cristã (e o era), e a autêntica nação alemã era ária (o que constituia uma afirmação comum), daquela a Cristandade, e mais especificamente Jesus de Nazareth, tinham que ser ários também.

O livro de Heschel analisa o auge do INSTITUTO PARA O ESTUDO E A ERRADICAÇÃO DA INFLUÊNCIA JUDEA NA VIDA DA IGREJA ALEMÃ (Institut zur Erforschung und Beseitigung des jüdischen Einflusses auf das deutsche kirchlichen Leben). Constituído em Maio de 1939, o Instituto adicou-se a limpar o cristanismo de “excrecências” judeas e a apresentar ao Povo (Volk) Alemão um Cristo “nórdico” e uma cristandade ária restaurada na sua pureza originária. A tal fim, os teólogos do Instituto serviram-se de todos os meios possíveis para estabelecer e promover a sua mensagem. Elaboraram leituras do Novo Testamento interpretadas dacordo com o razismo ánti-judeu. Solicitaram, também, o apoio político e financeiro do Partido Názi. Disseminaram a sua mensagem ánti-semita através dos meios acadêmicos habituais, esponsorizando “investigações”, artigos de jornais, livros, conferências, cursos de graduado, leituras públicas, etc. E, uma vez que Alemanha foi uma Igreja-Estado, levaram a sua agenda ariana ao povo nas bancadas dos templos: alterando os textos do Novo Testamento (nas suas traducções alemãs), re-escrevendo a litúrgia, advogando vigorosamente e promovendo que o Velho Testamento (judeu) fosse eliminado das escrituras cristãs.

Estas posições ideológicas eram prévias ao ascenso de Hitler ao poder e à fundação do Instituto. Em certo sentido, estes teólogos estavam encomendados a um velho projecto da cristandade: os esforços por des-judeizar o Cristanismo são quase tão antigos como o próprio Cristanismo. Embora os escritos centrais do Novo Testamento –as epístolas de Paulo e os quatro Evangelhos- foram produto da cultura helenística das sinagogas do primeiro século, alguns intérpretes gentis posteriores comezaram a considerar estes textos como uma condeia do Judaísmo na sua integridade. No século IV, com escasas excepções, os teólogos ortodoxos estavam dacordo em que o Judaísmo era uma religião abominável, correctamente rechazada por Jesus e Paulo, pelos profetasanteriores a eles, e (como evidenciava a destrucçãod e Jerusalém e o seu Templo pelos paganos de Roma no ano 70) por D’us mesmo.

Várias diferências importantes, sem embargo, distinguem este ánti-judaísmo cristão clássico da sua variante alemã no século XX. Primeiro, os emperadores sempre reconheceram e protegeram legalmente a prerrogativa religiosa dos judeus: a conversão dos gentis (já fossem paganos ou cristãos) era o que realmente provocava a sua ira e ansiedade. Segundo, os judeus em quase todas partes podiam deixar de “serem judeus” se se convertiam ao Cristanismo: a pesar das antigas formas de razismo, e as suas ligações entre etnicidade e religião, a identidade social podia cambiar-se mediante a filiação religiosa. E, em terceiro lugar, a Cristandade de Roma edificou-se a partir da ideia de Israel enunciada na leitura ortodoxa das escrituras judeas: o hebreu foi reconhecido como a primeira linguagem do Antigo Testamento, o fogar nacional judeu converteu-se na Terra Santa da Igreja, e o Império e os seus teólogos interpretavam a Roma Cristã como a autêntica herdeira das promesas bíblicas a Israel. Em ressumo, os cristãos incorporaram poderosamente, fundamentalmente e conscentemente uma imensa quantidade de textos judeus, conceitos e inclusso práticas na sua própria identidade.

A Europa medieval e o razismo pseudocientífico moderno erosionaram grande parte deste legado social e religioso. Eventualmente, as Cruzadas e a Inquisição sancionaram a opção entre conversão forçosa ou morte; os judeus conversos à cristandade, eram olhados com desconfiança, e permaneciam enquadrados numa categoria peculiar. Mas o matrimônio que se dou na Alemanha do século XX entre fascismo, nacionalismo e razismo radicalizou as antigas agendas do ánti-judaísmo cristão. “O Judeu”, dirão agora os pensadores alemães, nunca podem deixar de sê-lo, nem autênticos alemães nem autênticos cristãos. Aínda mais, os judeus passam a ser descritos como sedentos de poder, homicidas, conjurados no controlo mundial, inclusso como seres “satânicos”. “Se os judeus nunca têm podido ser assimilados culturalmente, convertidos à nossa religião, ou moralmente redimidos, se nunca foram quem de ser autênticos Protestantes alemãos, daquela que é o que pode fazer a Alemanha Cristã com os judeus alemães?”. Em 1936, num encontro de líderes da Igreja de Turingia e Saxônia, um integrante do Instituto, Siegfried Leffler, enunciou a resposta do Cristanismo Alemão:

“Na vida dum cristão, o coração sempre debe estar predisposto face os judeus…Como cristão, eu podo, eu devo tender sempre uma ponte aos judeus no meu coração. Mas como cristão, também tenho que seguir as leis do meu Povo…Inclusso sabendo que o ‘não matarás’ é um mandamento de Deus ou que “amarás ao judeu” porque ele também é filho do Pai Eterno, também sei que o devo matar, que devo disparar contra ele. E só podo fazê-lo quando me permito pronunciar esta palabra: Cristo”.

Este chamamento cristão a matar judeus fixo-se sem que houvessem protestas ou críticas dos demais ali presentes. Como resalta Heschel, “Limpar Alemanha de judeus chegara a ser um tema de discussão aceitável entre os teólogos, inclusso quando se propunha o assassinato como técnica para lograr essa limpeza”. Em nome da pureza ária, estes teólogos inclusso superavam aos názis: 1936 é uma data, de facto, muito anterior a que o assassinato em massa de judeus se convertesse numa política dos názis.

Heschel adica as primeiras 200 páginas do seu estudo a reconstruir os programas e políticas do Instituto. E bem que tem que “reconstruir”, porque, para além da sua prodigiosa produtividade e activismo político, para além dos 600.000 pastores, bispos, profissores de teologia, instrutores religiosos e colaboradores membros da sua rede, o Instituto era praticamnte invisível nos alvores da guerra. Esta circunstância é narrada por Heschel nos seus dois últimos capítulos. Os campeões cristãos do genocídio judeu, os dirigentes do Instituto, correram a ocultar-se uma vez que os Aliados ganharam a guerra, escrevendo cartas de exoneração uns dos outros, amparados pela Igreja, os seus colegas, e a sua própria mendazidade. Aqueles que durante a guerra utilizaram a sua experiência acadêmica em Judaísmo para exacerbar a agenda razista do Instituto, durante a paz utilizariam essa mesma experiência como forma de camuflagem: como podiam ser ántisemitas uns expertos em Judaísmo? E a resoância entre o ántijudaísmo do Instituto e o da teologia tradicional cristã fixo que a sua criminalidade fosse virtualmente impossível de explicitar. Como resultado, muitos dos principais actores do Instituto lograram inclusso obter distinguidas carreiras acadêmicas uma vez rematada a guerra, como professores de Novo Testamento.

O Jesus ário, portanto, é mais que um relato comovedor dos prncípios do ánti-judaísmo cristão. É, especialmente, uma obra mestra de pacente investigação de arquivos. A melhor parte do trabalho de Heschel está armazenada nos arquivos das bibliotecas locais e na correspondência pessoal. Não só localizou estes docuemntos, senão que entrevistou às esposas superviventes e a alunos dos teólogos do Instituto. Como ela afirma, as carreiras acadêmicas dos membros do Instituto posteriores à guerra não diminuíram, senão que foram em aumento: a rede profissional de lealdades e patrocínios ficou intacta e efectiva. A pesar de que se viram obrigados a renunciar ao seu activismo inicial –tras 1945 não podiam seguir proclamando o seu razismo homicida nem advogar por uma Bíblia cristã da que se extirpasse o Velho Testamento e os conceitos e palavras “judeas” (Messias, Aleluia, ou Amém) no Novo- o seu ánti-judaísmo acadêmico e teológico permaneceu intacto.

Tanto em quanto história do ánti-semitismo alemão como quanto análise de temas de teologia cristã, o estudo de Heschel é minucioso e profundo. Vinte séculos utilizando uma caricatura do Judaísmo para exprimir a identidade cristã já são demassiados. Essas caricaturas têm produzido discursos terríveis em dois sentidos: falsos historicamente, e atrozes moralmente. Como o estudo de Heschel amosa manifestamente, a membrana entre o ánti-judaísmo e o ánti-semitismo não é que seja extremadamente delgada, senão também, e desgraçadamente, absolutamente permeável.


PAULA FREDRIKSEN

* Paula Fredriksen é professora na Universidade de Boston e autora também do livro Agostinho e os judeus” (2008)

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