CAÍN, UMA PESSOA RECTA


A história de Abel é uma das mais malinterpretadas da Torá. Contrariamente à opinião geral, Caín -e não Abel- é a pessoa positiva. Ele é o primogênito, algo imensamente sigfnificante na cultura antiga. O Gênese diz que Caín nasceu de Deus, algo desconcertante no monoteísmo judeu, e nem insinua algo semelhante no caso de Abel.

Caín é mais civilizado, um granjeiro; Abel é um pastor. Inclusso na actualidade, as populações estáveis do Meio Leste, ódiam e temem aos pastores beduínos, que com freqüência saqueam os pequenos assentamentos. Os escritores e escribas da antigüidade eram urbanos. Os judeus –contrariamente aos gregos- nunca idealizaram aos pastores; pastorear era uma ocupação despreçável e de pouca categoria. Chamar a alguém “pastor” não era precisamente um cumprido. Os começos de David como pastor contrastam com o seu trunfo como rei e sábio. Abraham, por suposto, foi também um pastor, mas os relatos descrevem aos patriarcas como gente sem terras que colonizaram as terras de outros. Portanto não podiam ser apresentados como granjeiros.

Mentres Caín é acusado de uma só morte, Abel matava animais de forma rutinária como forma de vida. O nome de Caìn significa “adquirido ou recevido” [ ] (de Deus), mentres Abel [Havel] significa “nada, vapor”, não essencial. De facto, foi ré-empraçado por Set, um novo filho, aparentemente sem demassiada lástima.

Por que HaSheem preferiu a oferenda de Abel e ignorou a de Caín? As oferendas de pão –como a de Caín- são obrigatórias no Judaísmo e, portanto, presumivelmente agradáveis para Deus. A explicação poderia estar nas palavras de Deus a Caín: “por qué se tem abatido o teu rosto? Se obras bem poderás alçá-lo. Mas, se não obras bem, à porta está o pecado agardando como fera que te codicia e a quem terás que dominar”. Há duas opções: fazer o bem ou não.

Deus poderia ter rechaçado o sacrifício de Caín para ensinar-lhe a ter paciência, que é tão necessária para fazer o bem. Mas Caín, um homem dotado de livre vontade, eligiu a outra opção e matou a Abel. Significativamente, a Torá escolhe a palabra “matar”, e não “assassinar”, como no mandamento. Matar é um acto legal, como “execução” ou “guerra”. Nada leva a concluir que Caín matou ao seu irmão por ciúmes. Encontraram-se “num campo”, pressumivelmente o campo cultivado de Caín, e a morte poderia ter sido uma prototípica justificação da defesa dos colonos contra os beduínos ou um intento interessado de revertir as vitórias dos beduínos. [*]

Existem mais evidências aínda de que a morte de Abel não supujo problema algum. Quando Lamekh mata a duas pessoas, ostensivelmente em defesa própria, apela ao exemplo de Caín: “Se Caín é vingado sete vezes, verdadeiramente Lamekh setenta vezes sete”. O argumento é a fortióri: Caín matou um homem, e Deus deu-lhe protecção; Lamekh matou dois, portanto Deus dará-lhe ainda mais protecção. “Matar” neste contexto semelha ser uma boa acção que se fai merecedora da graça divina.

Embora a sensibilidade moderna condea “matar”, a actitude medieval e (especialmente) a antiga aproximava-se à neutralidade, sem lhe conceder demassiada importância. Os escrúpulos modernos, de facto, são artificiais, dado que muitos poucos duvidariam em matar para defender a sua vida ou propriedade.

Caín, como boa pessoa, lamenta a morte do seu irmão: “O meu pecado está para além do que pode ser tolerado”. Doutra banda, que Caín fosse “maldito” é ambíguo. A palabra (maldizer) referida à serpe no Edém tem um significado diferente, e ser “maldito da terra” não é idiomático. O significado apropriado aproxima-se a “separado” (da terra), algo que lhe suporia não volver colheitar nessa terra profanada com o sangue de Abel. É, pois, expulsado da terra trabalhável. Portanto, tras matar ao seu irmão beduíno, Abel, ele próprio converteu-se num beduíno. O relato cobra assim sentido histórico, toda vez que nas épocas de escassez os granjeiros tendiam a volver ao pastoreo, abandoando a vida sedentária. A “separação” de Caín é um exílio económico, e não de nenhum outro tipo. Convertê-lo em beduíno não era um castigo, dado que ele escolheu a segunda opção: impacente, intencionadamente, pudendo ter feito fronte ao pecado.

Deus foi comprensivo com Caín, protegendo-o com a marca [a marca de Caín], habitualmente malinterpretada como sinal de maldição, quando de facto o que garante é que “ninguém que o encontre o atacará”.


VADIM CHERNY



[*] Estudos recentes do episódio de Caín, sustentam que este sacrificou ao seu irmão Abel –ao que na realidade amava- como acto supremo de entrega a Deus, e que, portanto, foi um acto de amor. Deste modo, Deus teria-lhe outorgado a imortalidade pelo seu sacrifício (a marca de Caín).

0 comentarios: