[Terceira e última entrega do capítulo adicado à percepção actual dos europeus respeito o judaísmo. Último livro do pensador francês Pascal Bruckner]




O DOBLE MALDITO



Para os seus detractores, o Império do Mal é bicéfalo, funciona em tândemn pela cultura recíproca dos mesmos defectos, o mesmo em Washington que em Jerusalém. Os lobos apoiam aos lobos. O mesmo que escorremos o bulto em quanto a Israel pelo crimne do Holocausto, também descarregamos lastre nos EEUU pelo pecado colonial. Pois a malvada Norteamérica concentra num só lugar, num só povo e num só sistema toda a abjecção da que foi capaz Europa no passado. Parásita, homicida e arrogante, semelha estar revestida de todos os signos nos que se reconhece a culpabilidade de Oiccidente. Tão rica como não igualitária, dominadora, contaminante, baseada num doble crime, o genocídio dos índios e a trata de negros, próspera graças às ameaças e os canhões, liberal só de palavra, proteccionista de facto, indiferente às instituições internacionais que apoia de boca para fóra, dedicada por completo ao culto do bilhete verde, a única religião deste país materialista.

E os EEUU de George W. Bush oferecem desde há anos o espectáculo alucinante duma grande potença occidental que reanuda, em nome da luta contra o terrorismo, a empressa imperialista em Iraq e Afeganistão quando todas as capitais europeias têm renunciado a ela. Para que o Velho Mundo, manchado pelas suas falhas seculares, poda achar sobre a espalda do grande irmão transatlântico uma virginidade perdida é preciso que o demo estadounidense desempenhe muitos papeis contraditórios: o bastante próximo como para reunir os rasgos que detestamos de nós próprios, mas o suficientemente afastado como para não disimular uma distância infranqueável. Deve ser o maldito da família, a primogenitura deshonrosa, o cancro incrustado no coração de Occidente.

Como o ánti-semitismo, alérgia “à alteridade mínima” (Vladimir Yankelevitch), o ódio dirige-se ao íntimo cuja intolerável proximidade se rechaça. Provavelmente, os EEUU são um doble de Europa, mas no sentido em que os pais mais sãos podem engendrar filhos anormais e alimentar com respeito a eles sonhos infanticidas. Portanto, a nossa incomodidade deixa de tornar-se face a autoflagelação e despraça-se face esse terceiro providencial, símbolo do crime absoluto. Como uma madrastra arrependida, Europa quere recobrar a virginidade com o assassinato simbólico da sua filha transatlântica, toda vez que esta concentra todos os caracteres negativos das suas pátrias de orige (por isso o ánti-norteamericanismo é entre nós um verdadeiro passaporte para a notoriedade: valiu-lhe o P´remio Nobel de Literatura de 2005 ao dramaturgo britânico Harold Pinter, feroz detractor de Bill Clinton e de George W. Bush, mas para além disso, membro do comitê de apoio a Milosevic; e a Michael Moore a Palma de Oiro em Cannes, em 2003, pelo seu documental “Fahrenheit 911”).

E para uma Europa em declive, espectadora que já não actriz da História, que reconfortante resulta ver ao exército mais poderoso do mundo abocado ao fracasso pela acção de um punhado de yihadista em Iraq, que fermosa revancha lhe permite isso respeito do Novo Mundo, surdo às nossas advertências, embriagado pelas suas certidumes. A fóbia face os EEUU, a nossa religião cívica mais recente na Europa do Oeste, permite-nos substrair-nos à má conciência filiando-nos aos continentes que antigamente temos colonizado. França, Alemanha, Espanha, Itália, convertidos em ananos políticos, parecem proclamar ante a opinião pública: divorciamo-nos de Occidente para aproximar-nos ao Sul; porque os nossos interesses são idênticos.

“Semelha justo que se permita a um intelectual dizer tranquilamente por que se sinte estritamente solidário com o Terceiro Mundo [...] porque considera que a cultura europeia e o modo de vida occidental são já entidades distintas, porque agarda e quere acreditar que a luta do futuro se ressumirá numa fórmula: Europa e o Terceiro Mundo unidos contra Occidente” (Alain de Benoist).

Extranha sorte a da palavra “Occidente”, rechaçada pela extrema direita e a extrema esquerda, vituperada pelos názis, por mais que alguns grupúsculos tenham podido reivindicá-la. Nas propagandas nacionalistas de Europa sempre significou esse mal chegado do Oeste: desde Dostoiévski, eslavófilo militante oposto à Santa Rússia, à “maldita hez liberal”, até Thomas Mann, defensor, no seu “Diário” de 1914-1918, da alma alemã contra a civilização mecânica difundida pela França e os EEUU, sem esquecer a Heidegger, que distinguiu o mundo deshumanizado da técnica, encarnado nos EEUU e a URSS, da autenticidade germânica. Claro que cada país europeu pode ser o Occidente de outro e toda Europa pode fazer recair esse conceito só sobre os EEUU. Para a esquerda a “Western civilization” representa o fracasso da modernidade, a devastação do globo, o esmagamento das singularidades e das minorias, o submetimento e a massacre dos povos. Para além deste “pathos” comum, na ideia de Occidente há uma doble natureza, filosófica e geográfica. Se só se tem en conta esta última pode-se, como Samuel Huntington, pedir a Occidente que renuncie a qualquer injerência, que fique na sua casa para evitar o choque de culturas. Se, pelo contrário, privilegiamos à primeira, observa-se nesta noção uma cárrega explossiva, uma riqueça semântica que transtorna a orde das coisas, extendendo-se para além dos nossos continentes e confundindo-se com a emancipação da Ilustração.

Desacoplar o Velho do Novo Mundo, é também a estrategia de Al Qaeda e do presidente iranião Ahmadineyad, que prometem a indulgência ao primeiro se se conduz com cordura e renega do segundo. Quantos países de Europa estariam dispostos a obedecer esta cominação posto que obtêm o seu principal título de glória de resistir-se ao Tio Sam? Excomungar à curmá norteamericana é tanto como dizer que, finalmente, temos passado, depois de séculos de erros, ao campo correcto dos oprimidos e os resistentes.

Formar parte dos vencidos, escrever a história desde abaixo, esse semelha ser o nosso sonho. É possível que cheguemos a esse ponto antes do previsto.



PASCAL BRUCKNER

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