A DECORAÇÃO DAS CASAS JUDEAS

Os meus pais eram filhos de imigrantes askenazis. No fogar da minha infância, e nas casas dos meus amigos de origens semelhantes, notava-se uma sensação de inconsistência que se manifestava nos adornos materiais. Nenhuma das amas de casa sabia a ciência certa o aspecto que devia ter um fogar. Careciam de tradição em quanto a decoração, e as suas escolhas não podiam evitar ser arbitrárias.


Quando os nossos avós abandoaram o shtetl não troxeram nada. A dizer verdade, que poderiam ter traído? Nas suas aldeias não existia um “estilo judeu” de decoração nem de mobiliário. Não existiam adornos e o desenho dos artefactos domésticos vinhas ditado pela pobreza.


Não havia arte nos fogares askenazis. E como eram judeus, não havia adornos religiosos, para além dalguma copa de kaddish ou alguma menorá. Que trouxeram com eles os nossos avós imigrantes? Pode que uma ou duas fotografias, talvez um samovar; em poucas palavras: nada. E os filhos daqueles imigrantes, a geração dos meus pais, criaram-se no Novo Mundo, e também em diversos graus de pobreza. Os aforros adicavam-se à educação dos jóvenes para ajudá-los a “saír adiante”. E já acredito que saíram adiante! Chegaram a sobresair, à maneira judea, nas profisões que, desde os tempos do Antigo Egipto, lhes eram accesíveis de modo intermitente; a medicina, o direito, a mediação, o comércio, a banca, o espectáculo.


A geração dos meus pais adicou-se com todo o seu empenho a lograr primeiro uma educação e depois o éxito, e foram grandes assimiladores. Pelo que eu via, eram na sua maioria reformistas e consideravam-se “judeus de raza” mas não “religiosos”. Mantinham uma série de rituais religiosos, cada vez menos, com uma franca actitude de estar fazendo uma parvada, como se dissessem “Não sei por que estou fazendo isto, e estou dacordo convosco (“vós” era o mundo em geral, quer dizer, o mundo cristão) em que toda esta parvada não tem sentido algum e só serve para acentuar as diferências entre nós, quando nos deveríamos estar concentrando nas semelhanças”.


Que significava, daquela, ser “judeu de raza”? Significava que todos nós compartíamos os maravilhosos, cálidos e reconfortantes códigos, linguagem, brincadeiras e actitudes que servem de consolo aos estrangeiros em terra extranha. Todos nós compartíamos o humor judeu, o orgulho pelos logros dos nossos companheiros, uma sensação de superioridade, às vezes moral e às vezes intelectual, respeito à população em geral. Acaso não tínhamos, como grupo, conciência social, actividade social? Acaso não defendíamos a igualdade de direitos e consideração para todas as razas e nações? Sim, isso fazíamos. Para todas as razas agás para a nossa, que era inferior.


Na película de Mel Brooks “A louca história do mundo”, Cloris Leachman, no papel de Madame Defarge, arenga à multidão com um acento francês maravilhosamente espantoso: “Não temos casa, não temos pão, nem sequeg temos idioma…o único que temos é este guidículo asento”.


De maneira semelhante, a nossa segunda geração carecia de idioma.


Os nossos pais evitavam o yiddish –idioma de pobres e escravos- e o hebreu –o idioma morto dos rituais sem sentido. Sim, bom, falava-se em Israel, e um sempre podia ir lá, mas, como diz a velha brincadeira, “Que classe de trabalho é esse para um bom rapaz judeu?”.


Paa a minha geração, a cultura judea consistia na comida judea e as brincadeiras judeas, e a verdade é que nenhuma de ambas coisas nos servia de muito.


Não acreditávamos, e seguimos sem acreditar, na existência –e muito menos na excelência- dalgo que puider nem remotamente chamar-se “cultura judea”. Os judeus norteamericanos sempre temos estado dispostos, e seguimos estando-o, a permitir que o resto da população nos considere cidadãos de segunda classe, cidadãos de segunda classe que em muitos aspectos são invejados e despreçados, em lugar de oprimidos e despreçados, mas aínda assim…


Os judeus consideramos natural, por exemplo, que nunca tenha havido um candidato judeu a Vicepresidente [Nota: o artigo é de 1995].


É tamanhe a nossa falha de autoestima que, como raza, sentimo-nos satisfeitos e orgulhosos de que o nosso país tenha progressado até o ponto de que Jesse Jackson poida ser um candidato sério à Presidência. E isso a pesar do insultante ánti-semitismo do senhor Jackson.


A sua carreira desperta profundos sentimentos de satisfacção porque se está fazendo justiza social, e sentimentos de alívio porque o terrível razismo no que todos nos criamos está começando a desaparecer. Mas escuitamos os seus comentários ánti-semitas, olhamos como apoia aos políticos ánti-semitas, ouvimos as suas insultantes desqualificações e pensamos: “Está bem, para manter a paz, vamos fingir que não querias dizer isso”. E, curiosamente, neste aspecto da nossa vida social, portamo-nos como idiotas.


Por que, amigos judeus, nunca temos apoiado nem pensado em apoiar, e inclusso somos incapazes de conceber uma candidatura séria de um judeu à Presidência? Por que esta possibilidade semelha-nos irrelevante e um pouco ridícula? Pela mesma razão pela que nos paresce um pouco ridículo pretender que as ruas principais das nossas cidades se chamem Birnbaum ou Schwartz?


Os judeus conhecemos, inclusso tras um lapso de Setenta Anos –o tempo transcorrido desde que os meus avós chegaram a New York procedentes da Empalizada-, conhecemos, digo, a cálida camaraderia do exílio, conhecemos o calor do auto-desprezo. Conhecemos a cálida sensação de superioridade secreta e do éxito pessoal em circunstâncias adversas. Mas não sabemos grande coisa da exigência, nem sequer da sensação de rectitude da exigência de igualdade social absoluta.


Sabemos que o Negro é Formoso. Vimos às jóvenes judeas da minha geração matricular-se em massa em cursos de Estudos Negros nas nossas Universidades, e dissemos: Sim, claro, atrai-nas, e om razão, a força duma causa justa e revolucionária. D’us as abenzoe”; e apoiavamo-las no seu apoio à autoafirmação dos negros, e ao mesmo tempo apoiavamo-las quando remodelavam quirurgicamente os seus rostos para que semelhassem ser “menos judeus”.


Como judeus norteamericanos, resultava-nos impossível sentirque o Judeu é Formoso, que tínhamos possibilidades de plantejar uma demanda justa, sensual, vital, essencial, do mesmo modo que a plantejavam os índios, os esquimais ou os negros norteamericanos. Os judeus nunca temos pensado, e muito menos declarado “Sim, sou formoso, pertenço a uma raza formosa”. Tendemos a dizer, com essa irnonia que tem sido a nossa mais preçada e útil possessão durante uns quantos milênios: “Não vou dizer isso…é demassiado arrogante”; quer dizer, “demassiado judeu”.


Com o nosso apoio aos direitos morais, sociais e emocionais dos oprimidos, os judeus não só nos temos situado detrás de todos os demais grupos raziais, senão inclusso detrás das focas e as baleas. E a ti, amável leitor, se tão gracioso te semelha isto, atreve-te a dizer que estou equivocado.


De que nos enorgulhecemos? Que símbolos e que modelos temos? Sinalamos com orgulho a algum que outro atleta judeu Mas, que se passa com os financieiros e os profissionais judeus? E a gente do espectáculo? Esses não produzem nenhum orgulho razial. Por que não? Porque, simplesmente, estám fazendo o que se agardava de eles. Agarda-se que todos nós nos eforzemos e destaquemos nas profissões tradicionais dum povo sem terra; em ocupações intelectuais.


Mas um futbolista judeu…essa pessoa sim que destacaria como um fenómeno magnífico e benvindo. Essa pessoa seria uma image capaz de fazer que o coração latejasse um pouco ais depresa a causa do orgulho. O mesmo que o éxito dum criptojudeu.


“Sabes que é judeu?” era uma frase recorrente na minha casa e nas casas dos meus contemporâneos. O facto de que um judeu puider scender ao estrelato, sobretudo naindústria do espectáculo, sem ser abertamente judeu, sem representar papeis de judeu, sem incorrer em estereotipos, isso enchía-nos duma alegria secreta. Por que? Porque aquela pessoa lograra fogir. Aquela pessoa figera realidade uma louca fantasia pessoal: “passara” sem esforzo e, portanto, sem culpa, do mundo inferior ao superior. (Por certo, pergunto-me por que nunca se soe comentar que, quando num filme há uma personagem incontrovertivelmente “judea”, sempre se lhe adjudica o papel a um actor não judeu. Por que? Porque um judeu semelharia e agiria “demassiado judeu”).


Porém, as pessoas que, sendo obviamente judeas, pretendiam negá-lo, principalmente mediante a adopção duma religião cristã, provocavam assombro e desprezo nas nossas casas. A ssas pessoas denigrava-se-as pela sua debilidade, e pensávamos (1) Se eu posso aguantar, por que ti não?; e (2) como podes ser tão rematadamente idiota como para cambiar a tua condição de judeu por uma maior aceitação numa comunidade de extranhos, que (3) de todas as maneiras, não vas conseguir?


Em ressumo: que te induz a renunciar à única gente que te quer?


Porque nos queremos muito uns aos outros. Acredito que é muito curioso que não tenhamos observado que tendemos a não nos amar a nós próprios. Temos algum que outro jogador de pelota, temos as nossas histórias sobre Charlie Chaplin e Cary Grant, temos a menorá ou 0o samovar, tivemo-lo até que o meu pai o transformou numa lámpada, temos a nossa comida judea (que vai desaparecendo com a geração das avoas) e temos o nosso humor auto-denigrante (sim, já sei que é gracioso, é o humor mais gracioso do mundo, com ele tenho ganhado o pão toda a minha vida, e é auto-denigrante).


Mas nas nossas casas, no que se refire a repouso e identidade, não temos símbolos. Não sabemos que aspecto debe ter um fogar judeu (nem, posto já a isso, um judeu).


Vemos nas nossas casas alguma que outra “cita” vagamente semita: um refrám em inglês hebraizado, uma mesinha de cafê de mosaico, um recordo duma viagem a Israel ou, nos casos mais avançados, algum motivo judaico. E até aí chega o fogar judeu. O fogar dum forasteiro. Equipamos as nossas vivendas como se fossemos iánquis, apresentamos a Laurence Olivier e Klaus Kinski como judeus prototípicos. Nunca temos conhecido nada melhor.


D’us abenzoe a todos aqueles que, em todas as gerações, têm aceitado com orgulho a sua condição de judeus.

Somos um povo formoso, um bom povo, e uma magnífica e antiga tradição de pensamento e acção vive na nossa literatura e vive no nosso sangue. E lembro a retórica de Marcus Garvey, quando se dirigia ao público negro: «Ergue-te, Raza Poderosa, Raza de Reis, alza-te em pé, podes conseguir o que desejes.»

Nós responderíamos “isso já o sabia”, como temos feito sempre. Conseguir coisas não é o problema, é um problema de orgulho e disfrute.


Cada vez que deixamos passar um comentário ánti-semita pensando em silêncio “Que pessoa tão patética e errada”; cada vez que suspiramos numa festa na que um “amigo” diz: “Se tendes sido perseguidos todos estes milheiros de anos, não poderia ser que tenhads feito algo mal para provocá-lo?”; cada vez que adoptamos, apoiamos e defendemos qualquer causa social agás a nossa, estamos contribuíndo ao ánti-semitismo.


Estou farto dos banquetes de Pesaj aos que convidamos a amigos não judeus para enzarzar-nos em colóquios sociais, e que inevitavlmente degeneram em santurronas discusões sobre o autêntico que é ser judeu, o autêntico que é o Estado de Israel, e quem tem a culpa histórica do sofrimento dos judeus. Tão pobres somos que não podemos nem celebrar as nossas próprias festas sem utilizá-las como oferenda social ao grupo maioritário? Porque, em último termo, o activismo social, o apoio às causas progressistas, a convidação por Pesaj aos amigos não judeus,…sinto-o muito, mas tudo isso, em último termo, por muito “bem” que possa fazer, apesta a “toma isto, mas não me pegues”.


Não sei que aspecto tem um fogar judeu.


Nunca tenho estado em Israel. Como todos nós, desejo-lhes o melhor aos meus irmãos e irmãs israelis.

Estaria muito bem que também todos nós puidéssemos dar por rematado o nosso exílio neste país.



DAVID MAMET


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