A PISCINA DA INOCÊNCIA RECUPERADA (II)




[Segunda entrega do capítulo adicado à percepção actual dos europeus respeito o judaísmo, tirado da última obra do pensador francês Pascal Bruckner]





DESEMASCARAR AO USURPADOR


Posto que o autêntico judeu dos nossos dias fala árabe e leva a kefya a quadros, o outro é um impostor que se arroga um título de propriedade que tem perdido “a magistratura moral do martírio” (Péguy). A antiga vítima tem-se convertido à sua vez em verdugo, mas –e este é o detalhe interessante- num verdugo que reproduze exactamente os rasgos do seu antigo verdugo na Alemanha da dácada de 1930. Em ressumo, quando o judeu oprime ou coloniza, transforma-se enseguida em názi, sem meias tintas. A afiliação de Israel ao império invissível do Norte e sobretudo à Babilônia iánqui, faz de ela a reencarnação mais fidel do Terceiro Reich. Os názis perseguiram aos judeus; portanto estes têm-se convertido em názis. Que explicação tem se não o florecimento espontâneo da metáfora nacional-socialista na pruma das inteligências mais brilhantes? Isto é o que diz o filósofo Gilles Deleuze com respeito aos crimes do sionismo: “Diz-se-nos que não é um genocídio. Porém, é uma história que tem muito de Oradur desde o começo. O terrorismo sionista não atacava só aos britânicos, também afectava às aldeias árabes que tinham que desaparecer. O Irgun foi muito activo neste sentido (Deir Yassin)”. Ele mesmo volverá a manifestar sobre as operações de Israel no sul do Líbano em 1978: “Achamo-nos numa situação parecida à da Guerra de Espanha quando este país serviu de laboratório e como experimentação para um futuro ainda mais terrível”.

Aos que se assombrem do mimentismo entre Israel e o regime hitlerião bastaria com lembrar-lhes, por exemplo, os laços profundos de parentesco do movimento sionista da década de 1920 com o nacional-socialismo alemão, a visita entusiasta que fez em 1933 um dos primeiros SS austríacos, Leopold Itz von Mildenstein, a Palestina, e os elogiosos artigos sobre o sionismo que escreveu para “Angriff”, o periódico de Josep Goebbels.

A Israel não se lhe concede nenhuma gradação, nenhuma ierarquia à hora de fazer avaliações: está proibido andar-se com matizes com este país, passa-se instantaneamente dum extremo ao outro. Não se anota nunca no seu haver o facto de se ter retirado do Sinai, do sul do Líbano nem da Franxa de Gaza. É certo que Israel tem deixado de ser o acreedor moral de Occidente: a toma de Beirut em 1982, a passividade ante as massacres de Sabra e Chatila, a colonização sistemática de Cisjordânia, a dura repressão, diria-se desmessurada, da 2ª Intifada, os assassinatos planificados de líderes extremistas, a construcção do muro que se traga as terras cultiváveis e separa as famílias, os bombardeios sobre Líbano no verão de 2006 como represália pelos ataques de Hizbullah, têm dilapidado o capital de simpatia que atesourava nos seus inícios. Israel, como destacava o historiador Elie Barnavi, perdeu a batalha da image. Mas também é certo que, pelo facto de ser uma democracia, permite em geral aos meios e televisões livres que cobram os acontecimentos, incluñidos os crimes, levados a cabo pelo seu próprio exército. Lembre-se que foi em Tel-Aviv onde se realizou a maior manifestação de protesta contra os factos de Sabra e Chatila, que obrigou a dimitir ao general Sharon. Emmanuel Levinas já o dizia em 1963: “Israel não se tem volto pior que o mundo que a rodea, digam o que digam os ánti-semitas, mas deixou de ser a melhor”.

Trabalho inútil: todos os esforços da maioria dos intelectuais, com a notável excepção de Michel Foucault, têm-se orientado, pelo contrário, a criminalizar a esta nação, já que com respeito a ela só nos vem à boca o nome de Hitler. Israel é, quiçá, o único Estado do mundo que não deixa de repetir que tem direito a existir dentro dumas fronteiras seguras e reconhecidas. Esta formulação é em si própria assombrosa, já que imediatamente sugire a inversa: que esse direito é em si um privilñegio demessurado. Os puros de ontem têm-se transformado em monstros.

Em Europa, a questão palestiniana só tem servido para voltar a legitimar com toda tranqüilidade o ódio face os judeus. Cabe dizer com Bernard Lewis: “Os árabes só são, a fim de contas, outro pau com o que golpear aos judeus”. Também o testemunham os seguintes extractos dum artigo de opinião intitulado “Israel, o cancro”, assinado por Edgar Morin, Sami Naïr e Danièle Sallenave: “Os judeus que foram humilhados, despreçados e perseguidos, humilham, despreçam e perseguem aos palestinianos. Os judeus que foram vítimas duma orde despiadada, impõem a sua orde implacável aos palestinianos. Os judeus, vítimas da inhumanidade, amosam uma terrível inhumanidade [...] o povo eligido conduz-se como a raça superior”. “Comportar-se como povo eligido de Deus não só é estúpido e arrogante, senão também um crime contra a Humanidade. A isso chamamo-lo razismo”, escreve pela sua banda o filósofo noruego Jostein Gaarder, autor da célebre novela “Os mundos de Sofia”, que para além disso suspeita que alguns israelis se plantejaram “com a ajuda de Deus uma Solução Final para a questão palestiniana” (5 de Agosto de 2006, em “Aftenposten”).

Reversibilidade instantânea: se os judeus oprimem, seguro que o fazem à maneira da Brute Blonde, reproduzindo fidelmente as abominações sofridas no passado tanto em Alemanha como em Polônia. O simples facto de terem sido acosados e exterminados pelos názis transforma-os em názis potenciais. A Guerra do Líbano assimila-se à política alemã do Lebensraum, do espaço vital. A Franxa de Gaza é Auschwitz, e o mesmo Jenin, o sionismo é o irmão gémeo do nazismo.

A intransigência a posterióri contra o nacional-socialismo permite desqualificar melhor ao judeu que não renega de Israel. Esta sinonímia, com o poder de perturbação que leva implícita, procede dum salto teórico lamentável devido à pruma de intelectuais aos que se considerava mestres da distinção.

Nazificar aos israelis é deslegitimar ao Estado israeli, mas também judaizar aos árabes, reorientar o antigo combate contra a ignomínia à beira do Jordão. É, em suma, justificar por adiantado a possível desaparição de Israel, essa “entidade usurpadora”.



UMA ARBITRAGEM DELICADA


A França moderna, como se sabe, está dorosamente dividida entre duas lembranças dorosas: a de Vichy e a do Império, mas se trata de duas lembranças de peso desigual. A colonização semelha menos pesada de levar que o colaboracionismo, por uma simples razão: a derrota de 1940 e a ocupação afectaram a todo o país, mancharam-nos e humilharam-no, apesar da existência duma resistência minoritária e valente. Meio século depois, o nosso país recupera-se com dificuldade deste traumatismo. Pelo contrário, a aventura colonial, apesar do brutal e sanguenta que foi em muitas ocasiões e pese à existência dum poderoso grupo de pressão na Assembleia Nacional durante a 3ª República, só teve que ver, a fim de contas, com uma parte dos nossos compatriotas. Tal como o demonstra o rencor dos repatriados de Algéria, muito cedo sentiram-se abandoados por uma metrópole indiferente a estas expedições.

O imperialismo francês promovido por Jules Ferry, não esteve motivado por um exceso de vitalidade, senão pela obsesão da decadência, pela vontade de reparar a humilhação de 1870, pela angústia de ter deixado de estar à altura das grandes potenças europeias. Foi “um fenômeno de compensação” (Raoul Girardet) com miras a evitar a caída num destino mediocre, foi o capricho duma elite obsesionada pela grandeur e não a vontade de toda a comunidade nacional.

Os franceses, agás no caso de Algéria, colônia de assentamento, abordaram com tanta desganha as aventuras de ultramar que os governantes tiveram que pôr em marcha uma autêntica oficina de propaganda, a Agência Econômica das Colônias, cuja missão era desenvolver em todos os países, mediante exposições e filmes, “a fibra imperial” da população. A vergonha da derrota militar, da participação do Governo de Pétain na deportação dos judeus (mentres que em Dinamarca, por exemplo, que salvou a todos os seus judeus, o próprio Rei optou por levar a estrela amarela em sinal de solidariedade) levou-na à outra vergonha das conquistas africanas ou asiáticas, consideradas maioritariamente na actualidade como aberrações de outra época.

Entre a aventura colonial e a complacência com o hitlerismo, é melhor libertar-se deste pecado. Se se pudesse provar que os judeus, uma vez constituídos em Estado, reproduziram respeito dos mais débeis o que eles padeceram no passado por culpa dos mais fortes, então a passividade, ou cumplizidade, das nações europeias com respeito ao Terceiro Reich reduziria-se na mesma medida.

Então Israel é condeável por dupla partida. Como apêndice colonial enquistado em Oriente, esconde a sua vorazidade territorial tras o ecrã dum erro insuperável, o genocídio, como se os árabes tivessem que pagar por um crime cometido em Europa no passado. Ao antigo reproche de cosmopolitismo que lançava ontem a extrema direita, responde o de ilegitimidade que enarbola hoje a esquerda. Velaqui, pois, que o ódio a Occidente passa já pelo ódio aos judeus que se convertem na sua comunidade emblemática depois de terem sido, ao longo dos séculos, o chivo expiatório. Por isso o enfrontamento israelo-palestiniano ve-se como “o símbolo da negação do direito árabe e muçulmão por parte do mundo occidental”. Daí surge também a incrível tolerância das nossas elites intelectuais, políticas e mediáticas face o terrorismo palestiniano: os atentados, as bombas humanas, recebem uma condeia muito superficial, ou são justificados como actos de desesperação, como a resposta legítima às barbaridades cometidas pelo exército judeu. Nem o horror ante os candidatos ao suicídio, com a sua grotesca mitologia das 70 virgens que os agardam no Paraíso, compensará jamais, aos olhos desses grupos, a ignomínia dos israelis. Importam pouco as vítimas dessas explossões e muito menos a cultura de morte que se extende entre a juventude de Cisjordânia e Gaza.

Como quer que a nossa indulgência está marcada pela condescendência, não nos perguntamos se este alento que insuflam os militantes emboscados nos seus bastiões europeus ou estadounidenses não é, antetudo, suicida para os próprios palestinianos, e se não hipoteca o seu desejo de paz e de dignidade, já que há “momentos em que os povos aspiram a educar aos seus filhos noutro lugar que não sejam os cimitérios (Jean Daniel)”.

A nossa fascinação, através de ecrãs interpostos, pelos banhos desangue, as execuções colectivas, o martírio redentor de Hamas ou da Yihad Islâmica não só é obscena, como o foi a alegria de Baudrillard ante o derrube das Torres Gémeas de New York. Sobretudo, porva o nosso despreço por este povo reduzido a simples projectis humanos. Preferimos claramente a estética do crime à ética do compromisso.

Daí que, finalmente, a intelligentsia francesa e uma parte da esquerda, pese a um ánti-fascismo puntilhoso elevado à categoria duma mística republicana, tenham gardado silêncio ante o desencadeamento da judeofóbia de orige imigrante que sacudiu França a partir da 2ª Intifada (e em cujo contexto se situa a morte por tortura do jovem Ilan Halimi, obra duma banda da periféria em 2006, e que foi à vez um acto de gamberrismo e de razismo). São muitos os que se têm liado numa negação embaraçosa, quando não têm acusado aos afectados de paranoia, e inclusso de provocação. É sintomático que na França, cada vez que afloram problemas de identidade, botemos mão dos nossos judeus, inclusso, como ocorre actualmente, através do prisma de Oriente Próximo. É uma relação passional.

França quase se sublevou para defender a reputação de Alfred Dreyfus, acusado de traidor. “Uma nação capaz de dividir-se a causa da honra dum simples capitão judeu é uma nação à que cumpre trasladar-se”, dizia-lhe o seu pai lituano ao filósofo Emmanuel Levinas antes da 2ª Guerra Mundial.

Mas na dácada do 2000 os gardas do dogma da resistência, que procuravam por todas partes até os menores indícios d complacência face a doutrina názi, calaram de súpeto fazendo-se cúmplizes das vexações, os insultos e as paliças recebidas pelos seus concidadãos israelitas. Nada comparável, por suposto, com o que se passava na década de 1930, justo a inquietude suficiente, as suspeitas necessárias para envelenhar a vida cotidiana. Também não faltaram vozes para explicar os acontecimentos pelo contexto, como foi o caso do simpático José Bové, que acusou ao Mossad em 2001, numa emisão de Karl Zéro, no Canal +, de queimar as sinagogas galas para fomentar os problemas (desculpando-se acto seguido, por se as suas manifestações podiam ter “ferido sensibilidades”).

Quando o politólogo Pascal Boniface, numa nota confidencial aos dirigentes do Partido Socialista, enviada em Abril de 2001, aconselhava-lhes por simples cálculo eleitoral, que renunciassem ao voto judeu (500.000 na França) a favor do voto muçulmão (5 milhões), desembuchou-no tudo com a maior honestidade. Obrigados a escolher entre duas minorias, muitos intelectuais, simpatiçantes activos da causa palestiniana, têm preferido, em nome dum estrito ánti-razismo, abandoar aos judeus a favor dos árabes, considerando a estes injustamente favorecidos, e àqueles injustamente desherdados, passando a perdas e ganhos o sentimento de soidade e abandono dos primeiros.

Os actos de violência, o facto de que na França muitos homens e mulheres já não puidessem passear pelas ruas duma cidade cobertos com uma kipá ou luzindo uma Magen David, de que os rapazes judeus já não puidessem ser educados numa escola qualquer, têm ficado excusados pelo malestar dos jóvenes dos arrabaldos. Deixou-se livres a estes, em doses homeopáticas, para desquitar-se com os que eram mais débeis que eles.

Não, Europa não tem volto ao desenfreo da época de entreguerras, inclusso tem erguido todo tipo de barreiras morais e jurídicas para evitar o retorno da Besta Imunda. Mas pode pôr em prática, chegado o caso, um ánti-semitismo por abstenção em nome de uma loável preocupação pela equidade e a tranquilidade. (O qual não impede em absoluto um razismo equivalente com respeito aos imigrantes do norte de África nem da África negra, as innóveis agressões contra os estrangeiros de cor). Como esquecer, neste sentido, a anecdota daquele suboficial britânico em Palestina que, em 1947, antes os enfrontamentos diários entre judeus e árabes, não rematava de decidir a qual dos dois grupos despreçava mais?

Em todas as grandes cidades do Velho Continente, alcaides e governantes, para evitar a importação às suas cidades do conflito israeli-palestiniano, acabarão achando-se um dia na obriga de mediar entre as fortes comunidades muçulmãs e uma pequena comunidade judea. Não nos atrevemos a imaginar a qual de elas abandoarão. Antes as minorias voziferantes, apoiadas por uma forte diáspora exterior, a paz social bem vale algum sacrifício.



PASCAL BRUCKNER

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